17.2.08

DIAPASÃO
Sexta-feira passada esteve em casa o senhor que afina meu piano. Afinar um piano não é como afinar um violão, embora ambos os casos se resumam em girar uma tarracha presa à corda. Pensando bem, melhor dizer a verdade e esclarecer que maior parte das notas de um piano são compostas por três cordas. Um piano afinado é afinado vezes três.
Esse senhor, meu afinador, chama-se Teskla. Com nome de físico e já com certa idade, perambula pela cidade de São Paulo, com sua necessária bengala, afinando o instrumento dos pianistas fora do tom.
Trata-se - e que isso fique claro - de um ser humano admirável. Um senhor de idade que resguarda os benefícios de um ofício ambígüo, na fronteira do invisível com o imprescindível. Há apenas uma situação em que se pode vê-lo sem bengala: quando afina um piano. Quando afina um piano, deixa o apoio de lado, desmonta o móvel de madeira e teclas e não há o que possa derrubá-lo. É incrível a força nos finos braços e pernas deste devoto pela perfeição harmônica.
Devo contar sobre a noção de humanidade que me oferece Teskla.
Jamais esquecerei da primeira vez que meu piano foi afinado por ele. Esse dia foi marcado pela comoção em ver um homem trabalhador andar pelos próprios pés até um distante ponto de ônibus, com a finalidade de compartilhar seu trajeto com o povo até os pés da Serra da Cantareira, onde reside.
Lembro-me de ter ficado repleto de um sentimento de preocupação, de zelo, pelo fato de achar uma calamidade um senhor de idade e de bengala andar um belo trecho em busca da condução que o levasse ao conforto do lar.
Devo colocar meus colegas de juventude nesse texto e exalar uma interrogação fundamental: conseguiremos viver com tamanho vigor quando passarmos dos setenta? Ou será que seremos tão baixos a ponto de de abandonar a simplicidade e beleza de uma vida de luta? Penso em meu pai.
A lembrança eterna que persistirá é a de quando precisei de deixar Teskla a sós ao piano, dessa última vez. Cumprimentei-o comunicando que deveria sair para o ensaio da Fabulosa. Ele pediu para que não me incomodasse e que ficasse calmo, pois o instrumento seria deixado em perfeito estado, sem sombra de dúvida.
Nesse momento, não pude ignorar a velha lembrança da andança até o ponto de ônibus. Estava chovendo e o preço da afinação provavelmente não faria fazer valer o táxi.
Nesse meu momento de aflição pela integridade de Teskla, ele me estendeu os braços e me abraçou, dizendo que havia sido um grande prazer em me ter visto. Disse-me para que eu fosse com cuidado para o ensaio e que prestasse atenção nos semi-tons. Disse-me: "Áté a próxima".
Fui, por certo, elevado para um lugar bem melhor. Fui levado ao futuro harmônico.
Retirei-me, então, com destino ao ensaio. E chorei. Chorei, no carro, a tristeza em tê-lo deixado; a alegria em tê-lo visto; a certeza de que há bondade o bastante para se chegar à plena paz.

4.2.08

BRASTEMP
Dignidade humana e salário mínimo.
Domingo de carnaval. Recebi, em casa, Igor, Breno e Renata. Ofereci um almoço/jantar, resumido em antepastos e um prato de massa à base de tomates e lingüiça portuguesa defumada, sem falar nos adereços e alegorias.
Após a saída dos convidados, marcada pelos nobres cumprimentos e minha insistência em negar qualquer ajuda na cozinha, parei para dois cigarros e uma cerveja. Foram, os cigarros e a cerveja, a prévia da vindoura revelação sobre os ofícios de muitas donas-de-casa e trabalhadoras domésticas espalhadas pelo Brasil e pelo mundo.
Ao som de Porto da Pedra e Salgueiro, enfrentei a louça, tendo como mestre-sala e porta-bandeira a esponja e o detergente, nada mais.
Confesso uma mudança fundamental nos parâmetros que definem a razão com que uma pessoa deve ser levada a sério e ser profundamente respeitada. Quantos dos nobres leitores já enfrentaram do começo ao fim uma cozinha com cara de sambódromo às sete da manhã? Seja lá como for, para os que não não conhecem tal situação, vejo-me obrigado a pedir a gentileza de só voltarem a esse blog depois de terem lavado, à perfeição, seis pratos, duas panelas, uma tábua, oito copos e vinte e poucos talheres. E esse não é, nem de perto, o pior cenário possível.
É preciso conhecer a dor nas costas e no pescoço; o enrigecimento muscular das maõs; o controle para não deixar escorregar o prato ensaboado; as pernas que querem descansar mas ainda não podem...
Pensei muito na minha mãe, santa mãe, com seus sessenta e cinco anos, muitos dos quais passados de cara com pilhas de pratos cobertos de gordura solidificada, só porque o marido e os filhos queriam macarronada com lingüiça e um pãozinho com manteiga.
Pensei, também, na Delmira, nossa batalhadora de mais de vinte e três anos de família, quem, além de lavara a louça, lava e passa as roupas dos marmanjos e senhor que moram em casa. Fui abatido por um novo senso de justiça financeira, diretamente relacionada com o salário dessa gente humilde ("eu que não creio peço a Deus por minha gente/ É gente humilde, que vontade de chorar - Chico, Garoto e Vinícius).
Eles e elas merecem mais. No mínimo o dobro. O que me leva a pensar que o salário mínimo não pode, num país como o nosso, ser inferior a mil e oitocentos Reais. Porque só com um salário mínimo rigorosamente constitucional o Real pode deixar de ser ilusão.
E tem mais. Após a batalha da louça e do aço-inox, penso em como pode ser possível ter uma casa para chamar de sua antes de deixar a cozinha impecável. Depois dos pratos, há talheres, copos. Depois do último copo ainda há o último copo: o seu. Há o cinzeiro. Aí acabou! Ma nem tanto, porque a própria pia deve ser devidamente contemplada pela esponja e pelo detergente. Depois, o chão, que merece um pano úmido e, quando possível, um produto de limpeza adequado.
Quando a cozinha está pronta para outra maratona carnavalesca, quem passa a merecer um agrado é quem a deixou brilhando. A comemoração poder ser simples: um petisco, uma cerveja e um cigarro. E disso decorre o ciclo interminável da cozinha: agora, há mais um prato, um copo e um cinzeiro para limpar. Da limpeza decorre um prêmio, do qual decorre uma louça para lavar.
Até pode parecer que uma lava-louça Brastemp resolve o problema. Porém, o específico eletrodoméstico em nada favorece a dignidade humana do trabalhador ou da dona-de-casa.
No fim das contas, o buraco é mais embaixo. O buraco é do tamanho da tubulação da pia da cozinha.
Tudo está nas mão, nos dedos, que ficam tão enrugados quanto os da criança que adoram demorar no banho, na piscina, na praia...
Para nós que sabemos o que é arrumar uma cozinha, pode até ser que não sejamos uma Brastemp, mas nenhuma Brastemp é como nós, que, depois da cozinha, somos dignos de ter uma casa; e somos tão educados que não deixamos nem a colherzinha do café de fora da festa.