OS MORANGOS
Ou o que deles se pôde notar.
O que mais me fascina em tudo isso é o que dizia Rainer Maria Rilke ao jovem poeta, Kappus, sobre como o poeta extrai de sua solidão e daquilo que o reodeia assuntos sobre os quais versar.
Parece correto dizer que é possível extrair uma obra de arte de um mero diálogo entre amigos. Porém, o processo de concepção e tradução dessa específica obra não parece ter condições de surgir a não ser que o artista se encontre num estado mínimo de solidão necessário.
Outro aspecto interessante sobre esse assunto é o fato de o artista precisar de um estado constante e natural de atenção a tudo que o rodeia, enquanto, concomitantemente, deixa fluir seu poder de livre associação daquilo que o cerca com tudo aquilo que existe.
Daí ser absolutamente fascinante, ao menos para mim, a sintonia em que se encontravam Vinícius e Toquinho ao produzirem obras impecáveis como Tarde em Itapuã. O caso descrito nessa música deve ter se repetido incontáveis vezes na história daqula praia, entretanto, apenas eles foram capazes de traduzir em linguagem aquela sensação.
E com certa surpresa e inexplicável impacto de um sorriso foi que pude notar algo que, até então, pareço ter apreciado em momento de plena solidão.
Saia eu de um comum, freqüente (com trema, por motivo de respeito interno) e frio ensaio da Fabulosa Banda do Curinga - que toma lugar, desde sempre, na casa dos irmãos Felipe e André, baixista e vocalista daqula banda respectivamente, informação que divulgo com a licença e compreensão da família - quando, ao atingir a parte externa da residência, chegou sob, sobre e ao redor, um intenso e indiscutível cheiro de morangos.
Atravessei aquela nuvem silvestre e adentrei a sala de jantar da casa, onde encontrei o chefe do poder familiar, a quem perguntei se, por obra do acaso, havia notado o cheiro de morangos que rodeava a residência. A resposta, negativa, deixou-me intrigado, por razão da nitidez com que havia notado aquela repentina peculiaridade.
Voltei alguns passos, acho que cinco ou seis, para me certificar do que havia sentido pelo meu olfato, que é um dos meus sentidos menos confiáveis, diga-se de passagem...
Porém, fui atacado pela pela falta de argumentos: era como se eu estivesse em meio a toda uma safra de morangos recém-colhidos. Sentei. Simplesmente sentei e ali permaneci, calmo e esperançoso.
Aguardei, no meio dos morangos, tudo aquilo sobre o que ousei sonhar nos últimos dez anos, sem margem pra erro. Estava lá, em meio aos morangos, com meu violão, reproduzindo com todos os meus defeitos Mais um Adeus - "o amor é uma agonia, vem de noite, vai de dia, é uma alegria e, de repente, uma vontade de chorar". Estavam lá, os morangos, o violão, um adeus, um sofrimento, a piscina, a casa em Itaipava, o suco de laranja, o futebol, o almoço, o jantar, a cama do canto esquerdo do quarto ao lado do de casal, a Estrada União Indústria, as férias de julho, as de verão, o inverno, o natal e o reveillon, a sobriedade, Pedro do Rio, o churrasco, Beto, Mônica, Ricardo, Marcos, John, meu pai, minha mãe, minha avó Ophelia, minha tia Vivian, todos... Todos lá, com os morangos, com tudo, com pouco, quando todo pouco era tudo o que tínhamos e estávamos satisfeitos.
Aí, então, subia a banda vinda do estúdio de ensaio e antes que me fosse possível perguntar se eles sentiam os morangos, estes me deixaram. Deixaram-me com toda a lembraça e responsabilidade de procurar descrever a sensação de conhecer o universo paralelo que guarda tudo aquilo a que temos acesso se estivermos abertos à infinitude da consciência humana.
Aquilo pelo que vale morrer é essencialmente imaterial.
Nunca houve morangos em Itaipava. Quiçá, nem na saída do ensaio. Porém, eles pagaram essa conta e a eles devo um minuto e meio de pura satisfação.
Devo a eles, ou ao que deles se pôde notar.